Historial da Murakami-Kai em Almada
É chegada agora a altura de atravessarmos o rio e regredirmos uma última vez no tempo. Ali, na Outra-Banda, a dois passos de Lisboa aparecia, um pequeno núcleo de Karate-Do Shotokai, embrião do que viria a chamar-se Região Sul.
O Nascimento da Escola Murakami de Almada
Na zona velha da cidade de Almada, na Rua Capitão Leitão, às Torcatas existia um pequeno Dojo virado para a prática do Judo e orientado pelo saudoso Mestre Barata. O nome desse centro era Judo Clube de Almada. Foi nesse Dojo que surgiu, em 1973, por iniciativa de um dos alunos do Judo Clube de Portugal - o Sr. Abílio, cinto vermelho, 4º Kyu - um núcleo de prática de Shotokai.
Entre a meia-dúzia de caloiros que se tinham inscrito nesse ano de 73 e que usava o mesmo kimono para treinar Judo às segundas, quartas e sextas-feiras, e Karate às terças e quintas, figurava um jovem de 15 anos com um nome invulgar - José Patrão.
A excelente organização e nível técnico dos instrutores da classe de Judo, contrastava com a de Karate. Devido aos seus afazeres profissionais o responsável pelo Karate era obrigado a viajar bastante, não leccionando no clube mais do que uma ou duas vezes por mês. De modo que, as aulas no dia-a-dia eram geralmente orientadas por Manuel Revez Roberto, cinto verde, 6º Kyu, cuja graduação, obtida num Dojo de Shotokan, transitara sem problemas para o Shotokai... Na verdade a relação entre as palavras Funakoshi, Murakami, Shotokai, Shotokan, era fruto das mais variadas especulações.
Não se pense todavia que houvesse menos falta de seriedade, no trabalho nessa altura. Bem pelo contrário. A assiduidade aos treinos era muito elevada e o que em técnica faltava era compensado pelo Espírito. Espírito era a palavra mais escutada no Dojo, mais repetida no balneário e mais discutida no caminho para casa. Um espírito que tinha pouco de filosófico e muito de suor. Quanto espírito de sacrifício era exigido para suportar os prolongados aquecimentos e os intermináveis kihon's com a coxa paralela ao chão. - O Albano Rui tem bom espírito - comentava alguém - na segunda-feira ficou ali sozinho a fazer abdominais no final da aula. Acho que fez pr'aí uns quatrocentos Está claro que na semana seguinte o Albano já tinha dois ou três companheiros que o desafiavam a chegar aos quinhentos e... acabavam todos a rir-se uns dos outros no balneário ao notarem que tinham as costas em sangue.
Ao fim de mais de um ano de prática ininterrupta nestas condições, e esgotada a paciência dos cintos brancos mais antigos em relação ao esquema-base (quatro defesas, Chudan-Oi-Tsuki e Mae-Geri), os alunos tomam a iniciativa de contactar, em fins de 1974, o responsável técnico da escola - um tal Sr. Raúl Cerveira - para que designe um novo instrutor. A pessoa indicada foi o Francisco Silva, 2º Kyu e, com a sua entrada em funções, a evolução técnica passou a processar-se em moldes mais regulares, de modo que em Maio de 1975 já havia no Clube dois cintos amarelos.
Nessa época, no grupo de escolas sob a orientação de Raúl Cerveira, era normal realizarem-se treinos intensivos e mini-estágios extra-associação com bastante frequência. Por outro lado, as referências que o instrutor fazia aos estágios com o Mestre Murakami davam a entender aos alunos de que isso seria coisa para mais tarde que exigiria uma preparação prévia especial. Assim, antes de participarem no primeiro estágio com Mestre Murakami, os jovens alunos de Almada seriam sujeitos a um regime de treino para-militar (a que não era certamente alheio o facto de Francisco Silva e Cerveira terem regressado recentemente da Guiné) que incluía:
Em 1976, as instalações e horários do Judo Clube de Almada revelavam-se absolutamente insuficientes para o número de praticantes, que já ultrapassava a centena. Assim, os seccionistas do Karate - José Patrão, José Manuel Parreira e Camilo Fernandes - apoiados por Francisco Vargas, Rui Claudino e o já falecido Arnaldo Cardoso, resolveram-se a mudar o Dojo para as velhas instalações da Cooperativa Almadense, situadas na Rua da Cerca nas imediações do Castelo de Almada. Esses três meses do Verão de 1976 tornaram-se inesquecíveis para todos aqueles que comungaram do espírito de fraternidade que permitiu transformar o sujo salão de festas da Cooperativa num lindo Dojo e a casa do forno do pão, que tinha mais de meio metro de cinza no chão, num belo balneário, com água quente e tudo, pois claro.
Assim, dois anos depois de, no Norte, se ter edificado o Dojo Murakami da Maia surgia no sul o Shotokai Karate Clube, o segundo Dojo que, no nosso país, foi construído exclusivamente para a prática do Shotokai.
A sala não era grande - uns 7 por 15 metros no máximo, na parede do fundo do Dojo tinham sido pintados de um lado os kanjis correspondentes a Shotokai, do outro os que significam Karate-Do e, no centro dessa espécie de tokonoma, resplandecia um belo retrato pintado a óleo de Mestre Murakami. Decerto que o autor desse quadro - um anónimo praticante do Judo Clube de Almada que nunca praticou Shotokai - quando realizou o retrato a partir de uma foto não poderia adivinhar que aquela imagem iria assistir aos principais acontecimentos que marcariam a evolução da Murakami-Kai a Sul do Tejo.
Nesse Dojo pequeno mas acolhedor chegariam a leccionar, no conjunto dos horários semanais que contemplavam aulas de manha e à noite, três instrutores - o Francisco Silva, o Caldeira e o Jaime Castro Dias - e ali chegaram a estar inscritos durante épocas sucessivas perto de cento e vinte karatecas.
Subitamente num dia de Fevereiro de 1978, os instrutores convocam uma assembleia. Para espanto dos praticantes, que preenchem completamente a sala, o instrutor Francisco Silva anuncia, num tom solene: O Mestre Raúl Cerveira decidiu abandonar a Murakami-Kai. Todos os clubes sob a responsabilidade técnica do Raúl Cerveira decidiram já apoiá-lo, sem reservas. Eu estou totalmente solidário com ele e espero que vocês tomem a mesma decisão. Um dos praticantes pergunta se isso significa mudar de estilo. Não, não. Nós continuamos no Shotokai, mas... com outro Mestre.
Muitos dos praticantes entreolham-se, confusos. Nunca naquele clube se tinha dito uma palavra contra o Mestre Murakami e o próprio instrutor tinha pelo Mestre uma admiração enorme. Porém, a maioria dos praticantes tem graduações muito baixas e, para esses, Murakami é apenas o nome que dão à face daquele quadro no fundo da sala.
Sentem-se, por isso, tentados a seguir a orientação do seu professor.
Mas eis que surge uma voz discordante. José Patrão, o único cinto castanho do Clube, já tinha participado até à data em cerca de seis estágios com Mestre Murakami, além disso, embora não leccionasse no Shotokai Karate Clube, a gestão e funcionamento do clube competia-lhe directamente, de modo que assumiu uma posição peremptória: O único mestre que este clube reconhece é o Mestre Murakami. Se o professor Raúl Cerveira, decidiu abandonar o seu Mestre esse é um problema pessoal dele que nós, alunos, lamentamos. Mas este Clube fica com o Mestre Murakami e aconselhamos os instrutores a fazerem o mesmo. Caso contrário, teremos de procurar na Murakami-Kai outros instrutores para este clube.
Por incrível que pareça, face a esta posição do aluno mais antigo, nem um único praticante de Almada decidiu abandonar a Associação e foram os instrutores que tiveram de sair.
Porém, e ao contrário do que o leitor possa supor, a agradável sala do Shotokai Karate Clube está hoje abandonada e a bela pintura a óleo do Mestre quase esteve em riscos de se perder.
Mas, para compreender como tudo isso foi possível é preciso acompanhar um pouco da evolução do Karate noutras escolas da margem Sul do Tejo, voltando depois, com o instrutor Manuel Ceia, de novo a Almada.
Almada - segundo fôlego, queda, e... recuperação
Em Março de 1978, decorre uma reunião da Associação Murakami-kai / Shotokai de Portugal, em casa de Manuel Ceia, que era a sede provisória do Grupo nessa data, quando ali aparece José Patrão, na altura 3º Kyu. Com algum embaraço comunica os factos recentemente ocorridos na sua escola. Informa também que, embora alguns dirigentes do seu clube pretendam que ele substitua o antigo instrutor, ele não se considera suficientemente graduado para o efeito. A decisão da Direcção agrada ao responsável - a sua escola passaria a ter um 1º Dan como instrutor.
Almada, Abril de 1978. Manuel Ceia contempla pela primeira vez o enigmático retrato a óleo do mesmo homem que, dez anos antes, descobrira num outro pequeno Dojo da rua de Mercouer.
O método de ensino de Manuel Ceia - extremamente dinâmico e incisivo - encontrou ali bom solo para frutificar, de modo que ao fim de pouco mais de um ano a escola já possuía mais de duas dezenas de cintos castanhos e em Janeiro de 80 tinha o primeiro cinto preto - José Patrão.
Muitos outros cintos castanhos e negros ali se formaram, tornando-se o Shotokai Karate Clube (que Manuel Ceia rebaptizou com o nome de Instituto de Karate-Do Shotokai) um pólo de irradiação do Shotokai, a Sul do Tejo. Nomes como os de António José Valera, que viria a fundar um núcleo de Shotokai na Cruz de Pau, Rui Ribeiro, que mercê de grande dinamismo rapidamente abriria várias escolas em Almada, Firmino Ascensão, que mais tarde fundaria a Escola Murakami de Évora, Francisco Carvalho e Manuel Almeida, hoje dirigentes da Associação Shotokai de Portugal, e muitos outros nomes sonantes do Shotokai ali iniciaram a sua prática e desenvolveram a sua técnica.
Não obstante, a partir de 1980, um fenómeno bizarro começou a verificar-se: apesar do número de graduados ser elevado, o número total de alunos da escola decrescia cada vez mais. José Patrão, que começara a leccionar nos Olivais, fora substituído na gestão da escola por uma nova direcção. Problemas administrativos surgiram, os horários deixaram de ser cumpridos com rigor e o ambiente principiou a degradar-se. Durante o ano de 1981, em paralelo com o acumular de problemas na área financeira, começaram a multiplicar-se as referências negativas, primeiro aos dirigentes da Associação e, posteriormente, ao método de trabalho de Mestre Murakami.
Em 1982, Manuel Ceia decide afastar-se da Associação Murakami-Kai / Shotokai de Portugal e nova assembleia se realiza na escola. A opinião geral é a de que a escola deve abandonar a Murakami-Kai. José Patrão contesta a decisão assumindo posição idêntica à de quatro anos atrás - permanecer com o Mestre Murakami. Desta feita, porém, apenas um humilde cinto branco o apoia. Saem juntos da Assembleia com a promessa de não deixar morrer a Escola Murakami de Almada. E assim, em Abril de 82, um novo Dojo surge nas instalações do Clube Recreativo Piedense - o professor é o José Patrão, o seu único aluno chama-se: Jorge Martins Costa. Anos mais tarde Jorge Costa viria a tornar-se um dos pilares da zona de Almada, quer como assistente, quer posteriormente como instrutor.
Passado algum tempo, José Patrão dirige-se à antiga escola para recuperar o quadro a óleo de Mestre Murakami e sai chocado com a dureza da resposta de um dos alunos: Foi para o lixo!.
Alguns meses após este episódio Manuel Ceia abandonaria o Instituto de Karate-Do Shotokai, o qual ainda continuaria em funcionamento algum tempo sob a orientação do instrutor Castro Pontes, acabando no entanto por encerrar por completo as suas actividades.
O Dojo do Clube Recreativo Piedense, por contraste, aumentaria progressivamente o número de praticantes até se tornar, ao fim de alguns anos, um dos maiores Dojos da Associação. Alguns alunos que inicialmente tinham optado por permanecer no Instituto de Karate-Do Shotokai, reconsideraram a sua posição e regressaram à Murakami-Kai, como foi o caso de Alfredo Chambel, que se viria a tornar assistente de José Patrão, contribuindo bastante para o reforço da Escola Murakami de Almada.
Um desses alunos, Manuel Durão, regressado à Murakami-Kai muitos anos depois, trouxe consigo uma excelente notícia - não tivera coragem de ver deitar no lixo o quadro de Mestre Murakami, de modo que o guardara, em cima do guarda-fato... Apesar do estado lastimoso em que se encontrava, foi possível, graças à paciência e arte de um aluno da escola de Almada - Nuno de Araújo Brito - recuperar completamente a pintura. Dignamente emoldurado e enquadrado por um Tokonoma, o quadro encontra-se hoje exposto no Dojo Murakami da Caparica, constituindo um património valioso da Associação.
Artigo publicado originalmente no livro comemorativo do 25º aniversário da A.S.P. - 1994
O Nascimento da Escola Murakami de Almada
Na zona velha da cidade de Almada, na Rua Capitão Leitão, às Torcatas existia um pequeno Dojo virado para a prática do Judo e orientado pelo saudoso Mestre Barata. O nome desse centro era Judo Clube de Almada. Foi nesse Dojo que surgiu, em 1973, por iniciativa de um dos alunos do Judo Clube de Portugal - o Sr. Abílio, cinto vermelho, 4º Kyu - um núcleo de prática de Shotokai.
Entre a meia-dúzia de caloiros que se tinham inscrito nesse ano de 73 e que usava o mesmo kimono para treinar Judo às segundas, quartas e sextas-feiras, e Karate às terças e quintas, figurava um jovem de 15 anos com um nome invulgar - José Patrão.
A excelente organização e nível técnico dos instrutores da classe de Judo, contrastava com a de Karate. Devido aos seus afazeres profissionais o responsável pelo Karate era obrigado a viajar bastante, não leccionando no clube mais do que uma ou duas vezes por mês. De modo que, as aulas no dia-a-dia eram geralmente orientadas por Manuel Revez Roberto, cinto verde, 6º Kyu, cuja graduação, obtida num Dojo de Shotokan, transitara sem problemas para o Shotokai... Na verdade a relação entre as palavras Funakoshi, Murakami, Shotokai, Shotokan, era fruto das mais variadas especulações.
Não se pense todavia que houvesse menos falta de seriedade, no trabalho nessa altura. Bem pelo contrário. A assiduidade aos treinos era muito elevada e o que em técnica faltava era compensado pelo Espírito. Espírito era a palavra mais escutada no Dojo, mais repetida no balneário e mais discutida no caminho para casa. Um espírito que tinha pouco de filosófico e muito de suor. Quanto espírito de sacrifício era exigido para suportar os prolongados aquecimentos e os intermináveis kihon's com a coxa paralela ao chão. - O Albano Rui tem bom espírito - comentava alguém - na segunda-feira ficou ali sozinho a fazer abdominais no final da aula. Acho que fez pr'aí uns quatrocentos Está claro que na semana seguinte o Albano já tinha dois ou três companheiros que o desafiavam a chegar aos quinhentos e... acabavam todos a rir-se uns dos outros no balneário ao notarem que tinham as costas em sangue.
Ao fim de mais de um ano de prática ininterrupta nestas condições, e esgotada a paciência dos cintos brancos mais antigos em relação ao esquema-base (quatro defesas, Chudan-Oi-Tsuki e Mae-Geri), os alunos tomam a iniciativa de contactar, em fins de 1974, o responsável técnico da escola - um tal Sr. Raúl Cerveira - para que designe um novo instrutor. A pessoa indicada foi o Francisco Silva, 2º Kyu e, com a sua entrada em funções, a evolução técnica passou a processar-se em moldes mais regulares, de modo que em Maio de 1975 já havia no Clube dois cintos amarelos.
Nessa época, no grupo de escolas sob a orientação de Raúl Cerveira, era normal realizarem-se treinos intensivos e mini-estágios extra-associação com bastante frequência. Por outro lado, as referências que o instrutor fazia aos estágios com o Mestre Murakami davam a entender aos alunos de que isso seria coisa para mais tarde que exigiria uma preparação prévia especial. Assim, antes de participarem no primeiro estágio com Mestre Murakami, os jovens alunos de Almada seriam sujeitos a um regime de treino para-militar (a que não era certamente alheio o facto de Francisco Silva e Cerveira terem regressado recentemente da Guiné) que incluía:
- uma semana de estágio nos areais da Comporta, a Sul de Tróia, em regime de isolamento e imersão completa, com treinos de manhã e à tarde, footing de pés descalços pelo asfalto em brasa às duas da tarde e outros exercícios do género;
- dois acampamentos de fim-de-semana, na área militar da Tapada de Mafra, com alvorada às 7 da manhã, cross usando aparelhos de campo próprios para exercício militar, treino de Karate ao fim da manhã, almoço em grupo, sessões de Za-Zen (orientadas pelo Mestre Georges Stobbaerts) e novo treino de Karate ao fim do dia.
Em 1976, as instalações e horários do Judo Clube de Almada revelavam-se absolutamente insuficientes para o número de praticantes, que já ultrapassava a centena. Assim, os seccionistas do Karate - José Patrão, José Manuel Parreira e Camilo Fernandes - apoiados por Francisco Vargas, Rui Claudino e o já falecido Arnaldo Cardoso, resolveram-se a mudar o Dojo para as velhas instalações da Cooperativa Almadense, situadas na Rua da Cerca nas imediações do Castelo de Almada. Esses três meses do Verão de 1976 tornaram-se inesquecíveis para todos aqueles que comungaram do espírito de fraternidade que permitiu transformar o sujo salão de festas da Cooperativa num lindo Dojo e a casa do forno do pão, que tinha mais de meio metro de cinza no chão, num belo balneário, com água quente e tudo, pois claro.
Assim, dois anos depois de, no Norte, se ter edificado o Dojo Murakami da Maia surgia no sul o Shotokai Karate Clube, o segundo Dojo que, no nosso país, foi construído exclusivamente para a prática do Shotokai.
A sala não era grande - uns 7 por 15 metros no máximo, na parede do fundo do Dojo tinham sido pintados de um lado os kanjis correspondentes a Shotokai, do outro os que significam Karate-Do e, no centro dessa espécie de tokonoma, resplandecia um belo retrato pintado a óleo de Mestre Murakami. Decerto que o autor desse quadro - um anónimo praticante do Judo Clube de Almada que nunca praticou Shotokai - quando realizou o retrato a partir de uma foto não poderia adivinhar que aquela imagem iria assistir aos principais acontecimentos que marcariam a evolução da Murakami-Kai a Sul do Tejo.
Nesse Dojo pequeno mas acolhedor chegariam a leccionar, no conjunto dos horários semanais que contemplavam aulas de manha e à noite, três instrutores - o Francisco Silva, o Caldeira e o Jaime Castro Dias - e ali chegaram a estar inscritos durante épocas sucessivas perto de cento e vinte karatecas.
Subitamente num dia de Fevereiro de 1978, os instrutores convocam uma assembleia. Para espanto dos praticantes, que preenchem completamente a sala, o instrutor Francisco Silva anuncia, num tom solene: O Mestre Raúl Cerveira decidiu abandonar a Murakami-Kai. Todos os clubes sob a responsabilidade técnica do Raúl Cerveira decidiram já apoiá-lo, sem reservas. Eu estou totalmente solidário com ele e espero que vocês tomem a mesma decisão. Um dos praticantes pergunta se isso significa mudar de estilo. Não, não. Nós continuamos no Shotokai, mas... com outro Mestre.
Muitos dos praticantes entreolham-se, confusos. Nunca naquele clube se tinha dito uma palavra contra o Mestre Murakami e o próprio instrutor tinha pelo Mestre uma admiração enorme. Porém, a maioria dos praticantes tem graduações muito baixas e, para esses, Murakami é apenas o nome que dão à face daquele quadro no fundo da sala.
Sentem-se, por isso, tentados a seguir a orientação do seu professor.
Mas eis que surge uma voz discordante. José Patrão, o único cinto castanho do Clube, já tinha participado até à data em cerca de seis estágios com Mestre Murakami, além disso, embora não leccionasse no Shotokai Karate Clube, a gestão e funcionamento do clube competia-lhe directamente, de modo que assumiu uma posição peremptória: O único mestre que este clube reconhece é o Mestre Murakami. Se o professor Raúl Cerveira, decidiu abandonar o seu Mestre esse é um problema pessoal dele que nós, alunos, lamentamos. Mas este Clube fica com o Mestre Murakami e aconselhamos os instrutores a fazerem o mesmo. Caso contrário, teremos de procurar na Murakami-Kai outros instrutores para este clube.
Por incrível que pareça, face a esta posição do aluno mais antigo, nem um único praticante de Almada decidiu abandonar a Associação e foram os instrutores que tiveram de sair.
Porém, e ao contrário do que o leitor possa supor, a agradável sala do Shotokai Karate Clube está hoje abandonada e a bela pintura a óleo do Mestre quase esteve em riscos de se perder.
Mas, para compreender como tudo isso foi possível é preciso acompanhar um pouco da evolução do Karate noutras escolas da margem Sul do Tejo, voltando depois, com o instrutor Manuel Ceia, de novo a Almada.
Almada - segundo fôlego, queda, e... recuperação
Em Março de 1978, decorre uma reunião da Associação Murakami-kai / Shotokai de Portugal, em casa de Manuel Ceia, que era a sede provisória do Grupo nessa data, quando ali aparece José Patrão, na altura 3º Kyu. Com algum embaraço comunica os factos recentemente ocorridos na sua escola. Informa também que, embora alguns dirigentes do seu clube pretendam que ele substitua o antigo instrutor, ele não se considera suficientemente graduado para o efeito. A decisão da Direcção agrada ao responsável - a sua escola passaria a ter um 1º Dan como instrutor.
Almada, Abril de 1978. Manuel Ceia contempla pela primeira vez o enigmático retrato a óleo do mesmo homem que, dez anos antes, descobrira num outro pequeno Dojo da rua de Mercouer.
O método de ensino de Manuel Ceia - extremamente dinâmico e incisivo - encontrou ali bom solo para frutificar, de modo que ao fim de pouco mais de um ano a escola já possuía mais de duas dezenas de cintos castanhos e em Janeiro de 80 tinha o primeiro cinto preto - José Patrão.
Muitos outros cintos castanhos e negros ali se formaram, tornando-se o Shotokai Karate Clube (que Manuel Ceia rebaptizou com o nome de Instituto de Karate-Do Shotokai) um pólo de irradiação do Shotokai, a Sul do Tejo. Nomes como os de António José Valera, que viria a fundar um núcleo de Shotokai na Cruz de Pau, Rui Ribeiro, que mercê de grande dinamismo rapidamente abriria várias escolas em Almada, Firmino Ascensão, que mais tarde fundaria a Escola Murakami de Évora, Francisco Carvalho e Manuel Almeida, hoje dirigentes da Associação Shotokai de Portugal, e muitos outros nomes sonantes do Shotokai ali iniciaram a sua prática e desenvolveram a sua técnica.
Não obstante, a partir de 1980, um fenómeno bizarro começou a verificar-se: apesar do número de graduados ser elevado, o número total de alunos da escola decrescia cada vez mais. José Patrão, que começara a leccionar nos Olivais, fora substituído na gestão da escola por uma nova direcção. Problemas administrativos surgiram, os horários deixaram de ser cumpridos com rigor e o ambiente principiou a degradar-se. Durante o ano de 1981, em paralelo com o acumular de problemas na área financeira, começaram a multiplicar-se as referências negativas, primeiro aos dirigentes da Associação e, posteriormente, ao método de trabalho de Mestre Murakami.
Em 1982, Manuel Ceia decide afastar-se da Associação Murakami-Kai / Shotokai de Portugal e nova assembleia se realiza na escola. A opinião geral é a de que a escola deve abandonar a Murakami-Kai. José Patrão contesta a decisão assumindo posição idêntica à de quatro anos atrás - permanecer com o Mestre Murakami. Desta feita, porém, apenas um humilde cinto branco o apoia. Saem juntos da Assembleia com a promessa de não deixar morrer a Escola Murakami de Almada. E assim, em Abril de 82, um novo Dojo surge nas instalações do Clube Recreativo Piedense - o professor é o José Patrão, o seu único aluno chama-se: Jorge Martins Costa. Anos mais tarde Jorge Costa viria a tornar-se um dos pilares da zona de Almada, quer como assistente, quer posteriormente como instrutor.
Passado algum tempo, José Patrão dirige-se à antiga escola para recuperar o quadro a óleo de Mestre Murakami e sai chocado com a dureza da resposta de um dos alunos: Foi para o lixo!.
Alguns meses após este episódio Manuel Ceia abandonaria o Instituto de Karate-Do Shotokai, o qual ainda continuaria em funcionamento algum tempo sob a orientação do instrutor Castro Pontes, acabando no entanto por encerrar por completo as suas actividades.
O Dojo do Clube Recreativo Piedense, por contraste, aumentaria progressivamente o número de praticantes até se tornar, ao fim de alguns anos, um dos maiores Dojos da Associação. Alguns alunos que inicialmente tinham optado por permanecer no Instituto de Karate-Do Shotokai, reconsideraram a sua posição e regressaram à Murakami-Kai, como foi o caso de Alfredo Chambel, que se viria a tornar assistente de José Patrão, contribuindo bastante para o reforço da Escola Murakami de Almada.
Um desses alunos, Manuel Durão, regressado à Murakami-Kai muitos anos depois, trouxe consigo uma excelente notícia - não tivera coragem de ver deitar no lixo o quadro de Mestre Murakami, de modo que o guardara, em cima do guarda-fato... Apesar do estado lastimoso em que se encontrava, foi possível, graças à paciência e arte de um aluno da escola de Almada - Nuno de Araújo Brito - recuperar completamente a pintura. Dignamente emoldurado e enquadrado por um Tokonoma, o quadro encontra-se hoje exposto no Dojo Murakami da Caparica, constituindo um património valioso da Associação.
Artigo publicado originalmente no livro comemorativo do 25º aniversário da A.S.P. - 1994