O Dojo Que Nasceu Duas Vezes
Era a Primavera do ano de 1978.
Virei-me para ele e disse-lhe:
- Pai, eu quero fazer um Dojo, ali.
- Um quê?...
- Um Dojo, um ginásio para o Karate, ali no fundo do quintal.
O meu pai olhou-me com aquele ar desconfiado de quem acha que o filho se passou de vez e explicou-me que, no tempo dele, os jovens da minha idade pensavam era em trabalhar para comer:
- Quais ginásios, quais carapuça, depois de andar o dia inteiro a cavar, ou a ceifar à gadanha, o que a gente queria era descansar o canastro.
Mas eu não era menos teimoso do que sou hoje... Pensando bem talvez fosse até um bocadinho pior. De modo que, passados uns dias, lá voltei à carga:
- Oh, pai, mas eu não lhe dava despesa nenhuma, eu fazia o ginásio sozinho.
Ele riu-se e gozou um pouco, mas eu conheço-o bem: nunca resiste a um desafio. Além disso, havia qualquer coisa naquela proposta que lhe interessava... Aquele sorriso dele revelava uma carta qualquer escondida na manga. E concordou:
- Ah, sim? Fazes tudo sozinho, então 'tá bem, vamos lá a isso. Amanhã, vou mandar vir uma camioneta de areia e tu passas a areia toda da estrada cá para cima.
Desde pequenino andei sempre no meio das obras, mas nunca me tinha apercebido de quantas pás de areia tem um camião de 5 m3. E, passar a areia de pá da estrada para o terraço que ficava lá em cima, vou-lhes contar... Mas aquela era a prova de fogo, bem o senti. E não era meu feitio desistir.
As horas de reflexão agarrado à pá despertaram-me o engenho - a segunda camioneta de areia já foi içada por meio de uma tremonha feita de um tronco de pinheiro. E, com a ajuda de uns pedregulhos e alguns sacos de cimento lá se fizeram os caboucos.
- Já não falta tudo - pensava eu - mais um mesito ou dois e o ginásio 'tá pronto.
Mas qual o quê?! O velhote levou-me à letra. Eu tinha mesmo de fazer tudo, até os tijolos. Arranjou uma forma metálica e ensinou-me a fazer blocos de cimento com aquilo: muita areia, um pouco de cimento e umas borrifadelas de água; depois calcar tudo muito bem, com um pilão, desmoldar com cuidado, pôr a secar ao sol e... vamos ao próximo. Com a prática fui melhorando a técnica. Acabei por fazer blocos que deram para renovar as paredes de todos os armazéns lá da quinta e... se mais armazéns houvera, mais fizera.
À laia de compensação fui "promovido" a servente e o meu pai assumiu as funções de pedreiro. Ainda bem, porque fazer paredes direitas não é tão simples quanto parece e rebocar ainda é um bocadinho mais difícil.
Não acreditem nos aldrabões dos meteorologistas - o verão mais quente e mais longo de que há memória, foi o de 1978. Se algum deles lhes disser que não, vocês mandam-no ter comigo que eu convido o gajo a trocar, durante três meses, a praia pelos baldes de massa às costas. Mas, lá para fins de Setembro... Ta-ta-tamm! Tudo prontinho, com telhado e tudo. Bem, quase... faltava só o chão.
E foi então que eu apanhei uma das maiores desilusões da minha vida: fui informado que a verba acabara e, além disso, o que estava a fazer mesmo falta lá na quintarola era um armazém para a palha e um estábulo para as ovelhas.
Compreendi. Ou melhor, não compreendi mas tive de aceitar, pois claro. A casa afinal não era minha e a tal conversa do antigamente e do trabalho esforçado dos jovens dos anos 30, não deixava de ser verdade. O facto de estarmos em 1978, era apenas uma diferença de meio-século e, afinal, o mundo não mudara assim tanto em 50 anos, pelo menos por aquelas bandas.
Encarei a coisa o melhor que pude. Entendi-a como uma lição bem dura: se eu soubesse desde o princípio que o Dojo ia ser um estábulo teria trabalhado com o mesmo entusiasmo? Certamente que não!... Aprendi que são os sonhos, mais do que a força, que movem as montanhas.
Com o passar do tempo deixou de me magoar tanto ver o dojo-estábulo cheio de fardos de palha. Habituei-me à ideia e ao fim de uns anos até já me conseguia rir da situação.
Depois, casei-me, saí de casa dos meus pais e passei a visitá-los mais raramente. Porém sempre que lá entrava media, com passos de Zen-kutsu-dachi, a largura e o comprimento do meu dojo e pensava para comigo:
- Fui pouco ambicioso. O comprimento é pouco. Se eu transformasse estes 8m em largura e arranjasse aí uns 16 m de comprimento, isso sim, já seria um bom dojo.
Mas logo uma ovelha me vinha roer os cordões dos sapatos, lembrando-me que aquela casa não era minha e eu ia-me embora meio resignado.
Cabe aqui dizer que os meus ancestrais, tanto da linha materna como paterna, sempre foram pessoas ligadas ao campo e à terra. Poucas flores havia lá no quintal, mas mesmo assim não faltava nenhuma côr nem matiz. O verde escuro das folhas de milho, contrastava com a cabeleira loira das maçarocas. O castanho avermelhado do tronco da cerejeira com os seus raminhos finos e as suas folhinhas bem desenhadas, mal escondia os pontinhos vermelhos das cerejas. E, mais ao lado, a figueira com o seu tronco gordo e macio, os ramos pensativos pela carga dos figos maduros roídos pelos pardais gulosos, seguravam grandes parras espalmadas como milhares de mãos vegetais.
Foi por isso que, quando a teimosia-do-dojo-no-fundo-do-quintal me voltou a atacar, isto já na última década deste século, eu senti certa relutância em transformar aquela quinta numa imitação de um paradisíaco jardim zen. Teria eu coragem de substituir os feijoeiros por bonsais?
Lembrei-me então de algumas imagens de Les Arts Martiaux o belo filme e livro de Michel Random: dojos rústicos, com camponeses de cara calejada treinando boken, os filhos meio sujos sentados no chão a observarem e... uma galinha a passar. Recordei também a prática e atitude de Mestre Murakami durante toda a sua vida -Travaille! Travaille!. O trabalho era a sua forma de alquimia. Era o trabalho que servia de crivo para separar os preguiçosos dos diligentes. E, para os poucos que ficavam, era ainda o trabalho que lhes transformava os defeitos (o chumbo) das suas mentes na dignidade e correcção de atitude e comportamento (o verdadeiro oiro).
Gostaria o Mestre que um dojo a ele dedicado fosse rodeado de plantas ornamentais? Ou será que apreciaria mais uma bela sopa de legumes frescos criados ali ao lado?
Falei de novo ao meu pai no dojo. Mas desta vez falei-lhe de um local de trabalho, ao lado de outro local de trabalho. E ele não sorriu. Respeitou a ideia. E trabalhou a meu lado até ao limite das suas forças e a minha mãe acompanhou-o. Ela que nunca gostara de Karate.
Quase sem saber eu tinha construído a ponte entre o camponês da Caparica e o japonês dos antípodas. Entre o meu pai por nascimento e o meu pai por adopção.
O Dojo da Caparica nasceu pela segunda vez. E foi chamado Dojo Murakami.
José Patrão,
Artigo originalmente publicado na revista SHOTO - Boletim do Shotokai de Portugal - Julho 1993
Virei-me para ele e disse-lhe:
- Pai, eu quero fazer um Dojo, ali.
- Um quê?...
- Um Dojo, um ginásio para o Karate, ali no fundo do quintal.
O meu pai olhou-me com aquele ar desconfiado de quem acha que o filho se passou de vez e explicou-me que, no tempo dele, os jovens da minha idade pensavam era em trabalhar para comer:
- Quais ginásios, quais carapuça, depois de andar o dia inteiro a cavar, ou a ceifar à gadanha, o que a gente queria era descansar o canastro.
Mas eu não era menos teimoso do que sou hoje... Pensando bem talvez fosse até um bocadinho pior. De modo que, passados uns dias, lá voltei à carga:
- Oh, pai, mas eu não lhe dava despesa nenhuma, eu fazia o ginásio sozinho.
Ele riu-se e gozou um pouco, mas eu conheço-o bem: nunca resiste a um desafio. Além disso, havia qualquer coisa naquela proposta que lhe interessava... Aquele sorriso dele revelava uma carta qualquer escondida na manga. E concordou:
- Ah, sim? Fazes tudo sozinho, então 'tá bem, vamos lá a isso. Amanhã, vou mandar vir uma camioneta de areia e tu passas a areia toda da estrada cá para cima.
Desde pequenino andei sempre no meio das obras, mas nunca me tinha apercebido de quantas pás de areia tem um camião de 5 m3. E, passar a areia de pá da estrada para o terraço que ficava lá em cima, vou-lhes contar... Mas aquela era a prova de fogo, bem o senti. E não era meu feitio desistir.
As horas de reflexão agarrado à pá despertaram-me o engenho - a segunda camioneta de areia já foi içada por meio de uma tremonha feita de um tronco de pinheiro. E, com a ajuda de uns pedregulhos e alguns sacos de cimento lá se fizeram os caboucos.
- Já não falta tudo - pensava eu - mais um mesito ou dois e o ginásio 'tá pronto.
Mas qual o quê?! O velhote levou-me à letra. Eu tinha mesmo de fazer tudo, até os tijolos. Arranjou uma forma metálica e ensinou-me a fazer blocos de cimento com aquilo: muita areia, um pouco de cimento e umas borrifadelas de água; depois calcar tudo muito bem, com um pilão, desmoldar com cuidado, pôr a secar ao sol e... vamos ao próximo. Com a prática fui melhorando a técnica. Acabei por fazer blocos que deram para renovar as paredes de todos os armazéns lá da quinta e... se mais armazéns houvera, mais fizera.
À laia de compensação fui "promovido" a servente e o meu pai assumiu as funções de pedreiro. Ainda bem, porque fazer paredes direitas não é tão simples quanto parece e rebocar ainda é um bocadinho mais difícil.
Não acreditem nos aldrabões dos meteorologistas - o verão mais quente e mais longo de que há memória, foi o de 1978. Se algum deles lhes disser que não, vocês mandam-no ter comigo que eu convido o gajo a trocar, durante três meses, a praia pelos baldes de massa às costas. Mas, lá para fins de Setembro... Ta-ta-tamm! Tudo prontinho, com telhado e tudo. Bem, quase... faltava só o chão.
E foi então que eu apanhei uma das maiores desilusões da minha vida: fui informado que a verba acabara e, além disso, o que estava a fazer mesmo falta lá na quintarola era um armazém para a palha e um estábulo para as ovelhas.
Compreendi. Ou melhor, não compreendi mas tive de aceitar, pois claro. A casa afinal não era minha e a tal conversa do antigamente e do trabalho esforçado dos jovens dos anos 30, não deixava de ser verdade. O facto de estarmos em 1978, era apenas uma diferença de meio-século e, afinal, o mundo não mudara assim tanto em 50 anos, pelo menos por aquelas bandas.
Encarei a coisa o melhor que pude. Entendi-a como uma lição bem dura: se eu soubesse desde o princípio que o Dojo ia ser um estábulo teria trabalhado com o mesmo entusiasmo? Certamente que não!... Aprendi que são os sonhos, mais do que a força, que movem as montanhas.
Com o passar do tempo deixou de me magoar tanto ver o dojo-estábulo cheio de fardos de palha. Habituei-me à ideia e ao fim de uns anos até já me conseguia rir da situação.
Depois, casei-me, saí de casa dos meus pais e passei a visitá-los mais raramente. Porém sempre que lá entrava media, com passos de Zen-kutsu-dachi, a largura e o comprimento do meu dojo e pensava para comigo:
- Fui pouco ambicioso. O comprimento é pouco. Se eu transformasse estes 8m em largura e arranjasse aí uns 16 m de comprimento, isso sim, já seria um bom dojo.
Mas logo uma ovelha me vinha roer os cordões dos sapatos, lembrando-me que aquela casa não era minha e eu ia-me embora meio resignado.
Cabe aqui dizer que os meus ancestrais, tanto da linha materna como paterna, sempre foram pessoas ligadas ao campo e à terra. Poucas flores havia lá no quintal, mas mesmo assim não faltava nenhuma côr nem matiz. O verde escuro das folhas de milho, contrastava com a cabeleira loira das maçarocas. O castanho avermelhado do tronco da cerejeira com os seus raminhos finos e as suas folhinhas bem desenhadas, mal escondia os pontinhos vermelhos das cerejas. E, mais ao lado, a figueira com o seu tronco gordo e macio, os ramos pensativos pela carga dos figos maduros roídos pelos pardais gulosos, seguravam grandes parras espalmadas como milhares de mãos vegetais.
Foi por isso que, quando a teimosia-do-dojo-no-fundo-do-quintal me voltou a atacar, isto já na última década deste século, eu senti certa relutância em transformar aquela quinta numa imitação de um paradisíaco jardim zen. Teria eu coragem de substituir os feijoeiros por bonsais?
Lembrei-me então de algumas imagens de Les Arts Martiaux o belo filme e livro de Michel Random: dojos rústicos, com camponeses de cara calejada treinando boken, os filhos meio sujos sentados no chão a observarem e... uma galinha a passar. Recordei também a prática e atitude de Mestre Murakami durante toda a sua vida -Travaille! Travaille!. O trabalho era a sua forma de alquimia. Era o trabalho que servia de crivo para separar os preguiçosos dos diligentes. E, para os poucos que ficavam, era ainda o trabalho que lhes transformava os defeitos (o chumbo) das suas mentes na dignidade e correcção de atitude e comportamento (o verdadeiro oiro).
Gostaria o Mestre que um dojo a ele dedicado fosse rodeado de plantas ornamentais? Ou será que apreciaria mais uma bela sopa de legumes frescos criados ali ao lado?
Falei de novo ao meu pai no dojo. Mas desta vez falei-lhe de um local de trabalho, ao lado de outro local de trabalho. E ele não sorriu. Respeitou a ideia. E trabalhou a meu lado até ao limite das suas forças e a minha mãe acompanhou-o. Ela que nunca gostara de Karate.
Quase sem saber eu tinha construído a ponte entre o camponês da Caparica e o japonês dos antípodas. Entre o meu pai por nascimento e o meu pai por adopção.
O Dojo da Caparica nasceu pela segunda vez. E foi chamado Dojo Murakami.
José Patrão,
Artigo originalmente publicado na revista SHOTO - Boletim do Shotokai de Portugal - Julho 1993